Em 24 de abril de 2014, a presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, assinou o Marco Civil da Internet, um quadro de regulamentação da Internet baseado em direitos civis, pelo qual ativistas do Brasil há muito tempo vinham lutando. Apelidado de "Constituição da Internet", a lei visa reforçar a proteção das liberdades fundamentais na era digital. Apesar de ter sido desenvolvida através de um processo participativo, a lei não deixou de cair na tradicional negociata do processo legislativo, o que resultou em diversas concessões. Uma das mais prejudiciais, e ferozmente combatida por ativistas de direitos digitais, foi um mandato de retenção de dados que obriga a coleta e armazenamento de logs de conexões de qualquer indivíduo inocente.
O Brasil está agora em meio aos debates sobre a regulamentação do Marco Civil, e sobre o abrangente Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais, que juntos irão influenciar fortemente a forma como as empresas online e os governos podem tratar dados pessoais no país. O Ministério da Justiça anunciou uma consulta pública online sobre os dois tópicos, nos mesmos moldes da primeira consulta do Marco Civil, em que todas as partes interessadas podem contribuir. Os resultados dessas consultas serão determinantes para a aplicação prática do Marco Civil, como explica Dennys Antonialli, diretor executivo do InternetLab, centro de pesquisa independente que trabalha nas áreas de direito e tecnologia em São Paulo:
"Ambas as consultas têm a intenção de recolher contribuições sobre como essas leis devem ser formatadas. Embora o Marco Civil estabeleça uma série de direitos para as pessoas que usam internet no Brasil, muitas das suas disposições ainda dependem de uma regulamentação posterior, como é o caso dos planos "zero-rating" e dos limites para a retenção de dados. Este é o momento de expressar nossas preocupações aos políticos e garantir que elas sejam tratadas corretamente. O mesmo vale para o Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais, que servirá como uma legislação de base sobre privacidade no país, e complementará o Marco Civil de várias maneiras".
(Os boletins semanais do InternetLab sobre as consultas públicas são excelentes fontes de informação para todas as pessoas que queiram se informar e acompanhar os processos.)
Se a lei de proteção de dados for aprovada, o Brasil irá se juntar a mais de 100 países com leis de privacidade que restringem a coleta, utilização e divulgação de dados pessoais. Assim como nos Estados Unidos, no momento o Brasil tem apenas leis setoriais limitadas em algumas áreas. Princípios mais gerais de proteção de dados podem ser eficazes na proteção de dados pessoais, mas aplicar com êxito esses princípios, conciliando-os com outros direitos, incluindo a liberdade de expressão, requer cuidadosa elaboração, especialmente em um ambiente digital em rápida evolução.
Marco Civil na prática: neutralidade da rede
Um relatório emitido pela ARTIGO 19 Brasil, analisa o quão eficaz o Marco Civil tem sido durante os seus primeiros seis meses de execução. Nele, a instituição chama a atenção para o caso "Whatsapp e TIM", relacionado a questão da neutralidade da rede. Em 2014, a companhia de telefonia TIM (subsidiária brasileira da Telecom Italia Mobile), em parceria com o Whatsapp, lançou um plano (conhecido como "zero rating") em que oferece o uso do aplicativo de forma "gratuita", sem desconto na franquia de internet. A proposta de "zero rating", no entanto, gerou discussões sobre uma possível violação da neutralidade da rede, estabelecida no Marco Civil. Marcelo Bechara, conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), acredita que a proposta é uma questão de livre mercado, enquanto outras pessoas argumentam que a gratuidade gera assimetria no tráfego (já que muitas pessoas irão optar pelo uso do aplicativo em detrimento de outros) e, portanto, limita e inibe o surgimento de novas aplicações e inovações.
Segundo o InternetLab, o eixo mais movimentado e discutido na consulta pública para regulamentação do Marco Civil é o da "Neutralidade da rede". A principal discussão, por sua vez, gira em torno dos planos de "zero rating", e da seguinte questão: "Podem as operadoras de telefonia móvel (a partir de acordos comerciais) realizar esse tipo de discriminação para favorecer um aplicativo entre os demais?". Junte-se à discussão aqui.
Marco Civil na prática: anonimato
No Brasil, a Constituição proíbe o discurso anônimo. A intenção por trás dessa proibição é a de manter a possibilidade de identificar qualquer pessoa que expresse quaisquer opiniões, crenças ou comentários, tanto online quanto offline. O anonimato é fundamental para o exercício das nossas liberdades fundamentais, tornando possível para os indivíduos se expressar livremente e sem medo de retaliação. Ao não permitir que as pessoas realizem um discurso anônimo, a Constituição brasileira impõe obstáculos significativos à capacidade dos indivíduos de denunciar os abusos de poder ou expressar opiniões impopulares. Essa proibição, no entanto, não se estende à proteção da privacidade.
O Marco Civil reforça que a liberdade de expressão é um princípio fundamental para as pessoas que usam a Internet no Brasil. No entanto, essa disposição deve ser interpretada de acordo com as limitações impostas pela Constituição Brasileira, deixando pouco espaço para interpretações que possam permitir o anonimato para fins de livre expressão. O Marco Civil também estabelece que a legislação deve ser aplicável a todos os produtos ou serviços utilizados por indivíduos localizados no Brasil, o que tem encorajado autoridades do Ministério Público e agentes da lei a afirmar que a proibição constitucional do discurso anônimo também deve prevenir o uso de aplicações de Internet que permitam a expressão anônima.
Um exemplo recente disso é a proibição imposta ao "Secret", um aplicativo que se anuncia como um "lugar seguro para dizer o que está em sua mente de forma anônima". Invocando a proibição da Constituição Brasileira, o Ministério Público ingressou com uma ação judicial contra o serviço, que acabara de se tornar extremamente popular no Brasil. Embora mais tarde anulada, uma liminar foi concedida para proibir o "Secret" em lojas de aplicativos online (Google e Apple) no Brasil, e para removê-lo remotamente de dispositivos onde já havia sido instalado.
Esse caso bastante emblemático aponta para os potenciais perigos da aplicação da proibição constitucional visando evitar o uso de tecnologias que melhorem a privacidade, o que também traria repercussões indesejáveis para os direitos de ler e navegar anonimamente. (Verifique o documento com a orientação política da EFF em relação ao anonimato e a criptografia).
O Marco Civil continua sendo uma das mais bem trabalhadas, e democraticamente debatidas, expressões dos direitos digitais no mundo a conquistar força de lei. Mas esse não é o fim da história. Como qualquer documento fundacional, de qualquer Constituição à Declaração Universal dos Direitos Humanos, os verdadeiros desafios vêm com a interpretação e a aplicação. Cabe aos indivíduos engajados do Brasil se certificar de que a lei e a futura legislação mantenham o alto padrão definido no momento de sua criação.