Atualização: um novo texto do PL das Fake News foi divulgado dias depois do nosso post. O novo texto traz alguma clareza a uma porção de muitas ambiguidades críticas dessa proposta. Nós reconhecemos as tentativas de dar maior clareza à regra de remuneração no novo texto, mas a proposta é ainda perigosamente pouco especificada e muitas das lacunas perigosas que nós apontamos em nossa análise inicial permanecem.

Definições essenciais são deixadas para regulação posterior, incluindo a definição de "notícias", do que constitui "uso" de notícias e como este uso será medido e compensado. Ao deixar de definir esses termos críticos, essa regra oferece praticamente um cheque em branco a um futuro regulador.

Preocupa-nos especialmente que a proposta revisada deixe em aberto a questão quanto a se as exceções e limitações ao direito de autor cobrirão a citação normal de conteúdos de notícias por usuários de mídias sociais. A falha em proteger essa prática comprometeria a livre discussão de matérias jornalísticas importantes (assim como a reportagem jornalística em si). A proposta revisada ainda se baseia nos direitos autorais para responder aos abusos das empresas de tecnologia em relação à imprensa, embora esses abusos se relacionem principalmente a práticas corruptas no mercado de publicidade digital, e não a direitos autorais.

O "PL das Fake News" brasileiro (PL 2630/2020) contém a mais recente manobra tática na batalha global entre as empresas de Big Tech e a indústria de mídia – que é, em si, altamente concentrada e controlada por um punhado de empresas dominantes. A regra de remuneração no PL das Fake News é uma versão feita no Brasil que está prestes a se tornar lei, apesar das críticas da sociedade civil e de associações de jornalismo independente.

A EFF vem analisando e relatando sobre projeto de lei desde seus primeiros estágios no Congresso brasileiro. O último texto, que foi aprovado por um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados, segue apresentando pontos perigosos para a liberdade de expressão e direitos digitais. A Coalizão Direitos na Rede, coalizão brasileira de grupos de direitos digitais, publicou uma análise relevante das melhorias da última versão do texto. Ela também identifica os sérios desafios que permanecem, incluindo a ampliação das obrigações de guarda de dados. Para além do que está no texto atual, há preocupação com a pressão política persistente para que se retome a preocupante obrigação de rastreabilidade de mensagens privadas.

Igualmente perigosa é a "obrigação de remuneração" para veículos de mídia, uma iniciativa legislativa não relacionada, que foi introduzida em um artigo do projeto de lei sem o cuidado, consulta ou nuance que tal proposta merece. Tememos que, para as grandes empresas de mídia que defenderam esta medida, essa falta de consideração e nuance seja uma característica, e não uma falha.

Em poucas palavras, esta disposição obriga as plataformas a compensar as empresas de mídia pelo uso de "conteúdo jornalístico". Embora isente de seu escopo algumas das exceções e limitações estabelecidas na lei brasileira de direitos autorais, não está claro se essa isenção se estenderia aos links que usuários compartilham nas mídias sociais e que automaticamente importam apenas algumas frases do início de um artigo como uma prévia. Os tribunais considerariam tal link uma citação que não infringe a lei de direitos autorais? Embora a jurisprudência brasileira já consolidada tenha estabelecido que as exceções e limitações da lei de direitos autorais devem ser interpretadas de forma ampla, esta ainda é uma questão em aberto.

A regra proposta permite "o simples compartilhamento do endereço IP do conteúdo jornalístico original". Isto é confuso e tecnicamente impreciso, pois os endereços IP (protocolo de internet) geralmente não se referem a artigos específicos, e muitas vezes muitos sites compartilham um único endereço IP. Além disso, os usuários de mídia social normalmente não compartilham endereços IP de organizações jornalísticas. É possível que os redatores da proposta tenham usado "endereço IP" como sinônimo de "URL"; se este for o caso, os proponentes deverim retificar o artigo proposto.

Como está, a disposição, se promulgada, mudará a maneira como valores fundamentais dos direitos humanos no entorno digital, como a liberdade de expressão e o acesso ao conhecimento, são interpretados pelas empresas, tribunais e reguladores. A citação e o compartilhamento de links são um modo fundamental da expressão e do jornalismo online; se vierem associados ao pagamento obrigatório de uma quantia financeira, poucos se envolverão neles.

Em teoria, a proposta de obrigação de remuneração poderia tratar algumas dessas preocupações articulando definições delimitadas e bem elaboradas de "conteúdo jornalístico" e "uso"; bem como regras claras sobre como o sistema será projetado e supervisionado. Os proponentes também deveriam explicar se algum dinheiro pago pelas plataformas às empresas de mídia seria destinado aos jornalistas. Ao invés disso, os proponentes da obrigação deixaram a disposição alarmantemente vaga: os acordos de compensação serão deixados para regulamentação posterior a ser aprovada pelo Poder Executivo. Em outras palavras, cabe ao Presidente a decisão final, que poderá usar esse poder para favorecer os agentes mais influentes.

A obrigação será aplicável a provedores comerciais de ferramentas de busca, redes de mídia social e serviços de mensageria instantânea com mais de 10 milhões de usuários registrados no Brasil. Embora a proposta vise atingir apenas grandes plataformas comerciais da internet, sua abrangência ainda suscita sérias preocupações. Para aplicações de mensageria instantânea, cumprir com a obrigação implica uma vigilância em massa das comunicações privadas e um golpe decisivo e perigoso na criptografia de ponta a ponta. Os impactos perniciosos da regra de remuneração também não pouparão pequenos e médios agentes, sejam eles empresas de mídia ou empresas de tecnologia, como vimos na França após a aprovação da Diretiva de Direitos Autorais da União Europeia (veja abaixo para mais informações).

É pouco provável que a regra prevista no PL beneficie os veículos e jornalistas que mais necessitam de apoio financeiro. Tentativas de criar obrigações similares na França e na Austrália demonstraram que quando as grandes empresas de mídia negociam com grandes empresas de tecnologia, os veículos menores e independentes ficam para trás. A implementação francesa da remuneração por direitos conexos sobre o conteúdo aprovada na Diretiva de Direitos Autorais da UE levou a reclamações de veículos de mídia deixados de fora da recompensa. Isto, por sua vez, desencadeou uma batalha entre o Google e a autoridade de concorrência francesa, que ainda está em andamento.

Na Austrália, o News Media and Digital Platforms Bargaining Code - que visava criar acordos equilibrados entre a imprensa e plataformas de internet - acabou se tornando uma ferramenta de barganha para grandes veículos de mídia que optaram por acordos privados com plataformas tecnológicas, deixando de lado outros veículos menores. O Treasure australiano deve designar as plataformas digitais que se enquadram no âmbito do Código e que estão sujeitas às suas regras. Mesmo que a lei tenha sido promulgada no início de 2021, o governo ainda não ordenou que nenhuma plataforma pagasse. Nesse meio tempo, uma série de acordos comerciais de conteúdo entre Facebook e Google com empresas de notícias foram concluídos fora da legislação. Esses acordos também têm sido desiguais: por exemplo, a News Corp. de Rupert Murdoch assegurou seu acordo com o Facebook apenas algumas semanas após a aprovação do novo Código australiano. Mas outros veículos, menos conectados, tiveram seus pedidos de negociação recusados sem justificativa.

É provável que o mesmo se veja no Brasil. Há o risco de que a gigante de mídia do país, a Globo, e outros grandes veículos de comunicação, capturem os reguladores que conceberão e aplicarão o sistema de pagamento. Mesmo que a obrigação legal de pagamento nunca seja regulada, a ameaça iminente de sua aplicação poderia ser usada pelas grandes empresas de mídia para garantir o seu pagamento pelas grandes empresas de tecnologia, deixando para trás os pequenos e médios veículos de mídia. Como no caso australiano, a proposta brasileira está sendo impulsionada principalmente pelas grandes empresas de mídia com poder político e com poucos concorrentes. É por isso que associações de jornalismo independente divulgaram, no ano passado e mais uma vez na semana passada, manifestações públicas pedindo que o Congresso abandonasse a previsão dessa regra vaga de remuneração no PL das Fake News.

Do lado das plataformas, os acordos do Google na França oferecem uma lição de como esta regra pode impor efeitos adversos indiretos a plataformas de internet não dominantes e start-ups. A estratégia do Google para cumprir com a regra de remuneração foi vincular o pagamento dos veículos de imprensa ao uso do seu agregador de notícias do Google, News Showcase. Por exemplo, o Google e a associação francesa de imprensa Alliance de la presse d'information generale (APIG) elaboraram um acordo para que o Google pagasse aos veículos franceses de notícias. A APIG representa a maioria dos principais veículos de imprensa franceses. Para que os seus veículos de notícia associados participassem do acordo, eles tinham que se unir ao produto New Showcase do Google. Esta exigência foi uma das razões pelas quais a autoridade de concorrência francesa multou o Google por não negociar de boa fé os direitos conexos às publicações da imprensa. Com esta medida, o Google impulsionou sua obrigação de chegar a um acordo de remuneração no sentido de criar uma vantagem de mercado ao seu próprio produto agregador de notícias. Isso, por sua vez, serve para reforçar o papel central da empresa como o intermediário ao qual as pessoas vão para chegar aos sites de notícias.

Os pedidos de remuneração da mídia pelas empresas de tecnologia estão fundamentados na premissa de que os gigantes da tecnologia estão se apropriando indevidamente do conteúdo das organizações jornalísticas. Isto representa uma compreensão perigosa dos direitos autorais, pois pressupõe que os detentores dos direitos autorais têm o poder de licenciar (e assim controlar e bloquear) a citação e a discussão das notícias do dia. Isso prejudicaria tanto a livre discussão de reportagens importantes quanto a própria reportagem. A imprensa, afinal de contas, é uma prolífica usuária de citações de veículos de mídia rivais. Esta capacidade de reportar é fundamental para entender o papel da mídia na formação da opinião pública - incluindo seu papel na ampliação ou desmascaramento das chamadas "notícias falsas". A lei brasileira de direitos autorais de 1998 é explícita ao estabelecer que não há ofensa aos direitos autorais quando a imprensa reproduz artigos de notícias, desde que mencionada a fonte do conteúdo, justamente para que o público em geral possa acessar, discutir e criticar artigos jornalísticos.

Taxações sobre compartilhamento de links são uma má idéia - mas isso não significa que o Congresso e os reguladores não devam fazer nada para ajudar a imprensa, especialmente os veículos menores. Uma abordagem mais adequada começa com o reconhecimento de que as Big Tech primeiramente prejudicam a imprensa pela apropriação indevida de seu dinheiro (e não propriamente de seus direitos autorais).

A publicidade digital é dominada por um duopólio - Meta (antes Facebook) e Google - que têm sido repetidamente acusados de defraudar a imprensa. Essas fraudes incluem supostamente subcontabilizar audiência e, o que é mais perturbador, alegações de conluio direto de executivos sêniores de ambas as empresas para manipular todo o mercado publicitário, tanto para maximizar a parcela de receita arrecadada pelo duopólio de ad-tech (inclusive através de fraude flagrante) como para excluir outras empresas de tecnologia que poderiam ter pago mais aos veículos de imprensa. O Google supostamente cobra taxas mais altas do que as ad exchanges rivais e, de acordo com os reguladores, trapaceia quando cobra essas taxas.

Pior ainda: a regra de remuneração do projeto de lei pode, na verdade, reforçar a posição dominante do duopólio no mercado de publicidade digital, consagrando-os como elementos estruturais permanentes da indústria da mídia, de tal forma que os esforços para reduzir seu domínio comprometeriam os veículos de mídia que dependem deles.

Regulamentar a citação não é a maneira de dar a todos da imprensa no país um acordo justo. A arrumação do mercado de ad-tech é uma abordagem muito melhor. Por exemplo, legisladores e reguladores poderiam considerar o seguinte:

  • Restringir as empresas de oferecer tanto o "lado da demanda" (demand-side) quanto o "lado da oferta" (supply side) de serviços publicitários. Atualmente, os gigantes ad-tech rotineiramente representam tanto os vendedores de espaço publicitário (veículos de imprensa) quanto os compradores (anunciantes) na mesma transação, criando muitas oportunidades para enganar de forma a beneficiar as próprias plataformas às custas da imprensa. A lei deve exigir que as empresas representem ou compradores dos anúncios ou vendedores, mas não ambos;

  • Demandar que as plataformas de publicidade digital revelem os critérios subjacentes (incluindo números) utilizados para calcular a receita dos anúncios e a audiência, corroborada por auditores independentes;

  • Encontrar maneiras de permitir que os agentes menores participem em leilões em tempo real (real-time bidding) para espaço publicitário; e

  • Construir sobre a lei brasileira de proteção de dados para tornar a publicidade de vigilância menos atraente e incentivar a publicidade não invasiva, baseada no conteúdo, que utiliza o texto dos artigos, e não o comportamento dos leitores, para direcionar os anúncios. Isso corroeria a vantagem de dados desfrutada por empresas que praticaram décadas de vigilância não-consensual em massa.

Estas medidas podem levar mais tempo e podem exigir mais administração do que uma "obrigação de remuneração", mas elas têm uma vantagem: elas funcionarão. Uma obrigação de remuneração apressadamente construída e mal especificada é o epítome da ética do Vale do Silício de "mover-se rápido e quebrar coisas" - é o tipo de pensamento que criou esta confusão em primeiro lugar. Em contraste, reestruturar o mercado publicitário para torná-lo justo ao jornalismo, para eliminar a vigilância em massa e para purgá-lo de fraudes generalizadas é um projeto que envolve "mover-se lentamente e consertar as coisas". É o antídoto para a toxicidade do Vale do Silício.

Quando permitimos que debates sobre a remuneração da imprensa e a sustentabilidade do jornalismo sejam apresentados como uma batalha entre as Big Tech e a Grande Mídia, perdemos de vista os verdadeiros desafios: promover a liberdade de expressão e o acesso à informação e ao conhecimento. Uma boa política digital deve lutar por um ambiente online com rica pluralidade de vozes e uma gama diversificada de fontes sólidas de notícias.Tais prioridades não emergirão de acordos privados realizados entre a mídia e os gigantes da tecnologia nos bastidores, e dar a ambos os lados mais poder e menos competição só vai piorar as coisas.

A sociedade civil brasileira rejeitou a proposta de que devemos escolher um ou outro. Ela está exigindo mais diversidade e justiça, e não um enraizamento dos atores que já são dominantes e altamente concentrados. Os legisladores brasileiros devem ouvir e abandonar a problemática obrigação de remuneração prevista no PL das Fake News.